Boa leitura para os acadêmicos de Serviço Social interessados na compreensão e discussão do SUS e nos serviços de saúde sobre três vertentes: SUS, direitos sociais e Capitalismo, das pesquisadoras Luiza d'Ávila Viana e Cristiani Vieira Machado. Ponto positivo apontado pelo texto foi que o "SUS propiciou algumas mudanças importantes", como por exemplo a criação de uma estrutura de serviços descentralizada. Esse processo reduziu a
participação federal no financiamento, coparticipação estados e municípios dos
gastos, dos arranjos assistenciais, da gestão do mix público/privado e
do padrão e extensão de cobertura. Outro ponto importante e positivo foi a expansão dos serviços de
atenção básica em saúde no território nacional, com repercussões
positivas para o acesso e melhoria de alguns indicadores de saúde da
população. O texto aborda mais detalhes e merece uma leitura. Boa Leitura!
Publicado em: 31/05/2013 11:53:00
Ana Luiza d'Ávila Viana* e Cristiani Vieira Machado**, membros da Plataforma Política Social via Jornal do Brasil
No
capitalismo qual é o papel do Estado Social? Reafirmar o compromisso de
extensão dos direitos sociais e evitar a privatização, entendida como
promoção dos padrões individualizantes do mercado de consumo.
Para
isso são necessárias inúmeras políticas públicas de fomento à
construção de instituições produtoras e reguladoras de serviços sociais,
de regras fiscais equânimes, de promoção e incentivo à ocupação e à
capacitação da força de trabalho, de melhorias e instalação de intensa
fluidez urbana, de garantia habitacional, entre outras.
O Estado
Social atua de forma diminuir os impactos do mercado na criação voraz de
desigualdades, o que somente a política e a criação de estruturas
voltadas para o interesse coletivo podem fazer, promovendo o princípio
da comunalidade endossada, do seguro coletivo contra o infortúnio
individual e suas consequências, como diria Zygmunt Bauman.
Mais
do que isso, o Estado Social olha o futuro no sentido de criar uma
sociedade de semelhantes, promovendo políticas e regras voltadas para
igualdade e a diminuição das diferenças de partida (desde o nascimento),
assegurando maiores chances para aqueles não portadores de ativos (na
forma de renda, propriedades, capital social).
São numerosas as
explicações para o surgimento do Estado Social no século XX, porém o
certo é que a política foi crucial para conter o avanço do mercado
autorregulado e a ausência de mecanismos de proteção social em todos os
países.
No Brasil foi construído um Estado Social voltado para o
mercado de trabalho, de forma a cobrir infortúnios gerados pelo
assalariamento, no processo de industrialização tardia, assentado no
êxodo rural e na imigração. A intensa urbanização dos anos iniciais do
processo de industrialização, sem políticas públicas mais abrangentes,
colocou uma imensa massa de assalariados recebendo benefícios
diferenciados conforme a sua inserção laboral, convivendo (ainda) com
formas pré-modernas de proteção social, como aquela ofertada pelas
ordens religiosas e associações comunitárias de todo tipo. Dessa forma, a
marca histórica do Estado Social brasileiro é a segmentação
(urbano/rural; trabalho formal/informal), a diferenciação dos benefícios
e o paternalismo político e religioso dos sertões do nosso país.
Tardiamente,
na crise e no processo de democratização dos anos 80 do século XX, é
que uma política para a Seguridade Social foi pensada e endossada pela
sociedade em meio a uma discussão sobre novos padrões de
desenvolvimento, justiça social e liberdade, palavras sempre ouvidas nos
grandes comícios das “Diretas Já” (realizados em São Paulo, Rio de
Janeiro Belo Horizonte e em outras cidades brasileiras). Porém a
trajetória política do país se distanciou dessas insígnias, quando uma
nova ordem conservadora quis reverter todas as conquistas do período de
capitalismo regulado e de alargamento dos direitos sociais no mundo, com
forte repercussão nos países emergentes.
Como construir um novo
Estado Social sobre as bases da solidariedade, da justiça social e da
responsabilização coletiva pelos riscos individuais, em um momento de
questionamento profundo do papel do Estado e de políticas públicas
voltadas para reversão do quadro de desigualdades inerentes ao processo
de acumulação capitalista?
No último decênio do século passado, a
tônica dos discursos conservadores (mais do que liberais) foi o forte
questionamento do Estado-protetor, burocrático e paternalista, assentado
numa cultura de dependência assistencial e em uma estrutura tradicional
de família. Criticou-se o excesso de taxação e de igualitarismo
promovido pelo Estado, com efeitos negativos sobre o plano da
eficiência, o estímulo empreendedor, o estímulo ao trabalho e a
liberdade de escolha.
Esse questionamento repercutiu fortemente
em todos os países e provocou reformas institucionais que, de maneira
geral, iniciaram ou acentuaram processos de privatização, que buscam
transferir, para os ombros dos indivíduos, parcelas crescentes da
cobertura dos riscos sociais e o estímulo à participação privada (com e
sem fins de lucro) na oferta e gerenciamento dos serviços sociais.
Porém,
foi nos países fora do centro econômico mundial que a onda conservadora
mais se impregnou e teve efeitos deletérios. Isso se deu pela
incipiente base do Estado Social, pela crise econômica que assolou
vários desses países no final do século, pela estreita base tributária,
pela frágil cultura de solidariedade e ethos público, pela escassez de
partidos de cunho socialista e social democrata, por um perfil econômico
agrário baseado na grande propriedade, pela pouca proteção ao trabalho,
entre outros fatores.
Mesmo assim, foi possível construir ou
adensar políticas de proteção em algumas nações, com destaque para os
países emergentes da Ásia, e implantar políticas redistributivas na
América Latina, o que gerou o fortalecimento da assistência social no
tripé da Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência).
Essa
forte vocação para a área assistencial se explica também pelo tipo de
desenvolvimento econômico (pós 2004) das economias sul americanas, com
forte participação do consumo privado no PIB, expansão do setor de
serviços, fraco desempenho da indústria local e crescimento das
exportações de commodities de diferentes tipos (minério, petróleo,
carne, produtos agrícolas).
Tal padrão de desenvolvimento
necessita incorporar massas crescentes ao mercado de consumo, o que
impõe melhoria e redistribuição de renda (via trabalho ou
transferências), desoneração fiscal, aumento progressivo de salário,
investimentos em serviços sociais de atendimento pontual e voltados para
problemas e populações específicas.
Nessa perspectiva, outros
tipos de políticas sociais, como a de saúde, por exemplo, se justificam
mais pelo incentivo econômico à produção de insumos, equipamento, enfim,
ao complexo da cadeia produtiva da saúde, do que pela instituição de um
sistema com ações e serviços igualitários e atendimento equânime,
eficiente e de qualidade a todos os cidadãos.
No Brasil, a
criação e a expansão do SUS nesses últimos 25 anos se deu justamente em
meio a concepções distintas sobre o Estado Social. De um lado,
assentou-se em uma proposta abrangente de Seguridade, inscrita na
Constituição de 1988, baseada em um desenho integrado e universalista de
políticas sociais, e sustentado por intensa mobilização de atores
políticos setoriais. De outro, iniciou-se nos anos 1990 em um contexto
de predomínio de uma visão negativa do Estado; para se defrontar, a
partir dos anos 2000, com uma retomada da valorização do Estado, mas sob
um modelo de articulação entre o econômico e o social que confere pouco
espaço às políticas sociais universais.
Mesmo em um cenário
adverso, o SUS propiciou algumas mudanças importantes. Em primeiro
lugar, houve a criação de uma estrutura de serviços descentralizada,
calcada no desenho federalista, favorecendo a criação de uma base de
apoio nos políticos e outros atores locais e regionais. O processo de
descentralização ocorreu com progressiva redução da participação federal
no financiamento, e maior assunção subnacional dos gastos, dos arranjos
assistenciais, da gestão do mix público-privado e do padrão e extensão
de cobertura.
Em segundo lugar, ocorreu uma expressiva expansão
dos serviços de atenção básica em saúde no território nacional,
propiciada por amplo consenso internacional e nacional em torno do tema,
com repercussões positivas para o acesso e melhoria de alguns
indicadores de saúde da população. No entanto, pouco investimento de
forte conteúdo tecnológico foi feito no período, e os serviços privados
na área diagnóstica, terapêutica e hospitalar de alta complexidade se
expandiram, principalmente nos maiores centros urbanos.
Assim,
outro processo se alastrou: o da intensa participação privada na
assistência à saúde, de diferentes formas: na oferta de serviços; na
oferta de tecnologias de ponta para todo tipo de procedimentos médicos;
na intermediação financeira no mercado de saúde; no estímulo à
conformação de grandes grupos capitalistas na área, envolvendo serviços,
finanças e indústria, de caráter multinacional. Tal expansão privada
contou com forte financiamento e subsídio estatal, o que em parte
explica um gasto privado maior que o público na área da saúde no Brasil e
um mercado de saúde de natureza privada operando fora e dentro do SUS.
Na
ótica econômica, o crescimento do segmento privado via empresas que
comercializam planos e seguros de saúde tem uma fácil explicação, pois
há um gatilho acionado para a expansão toda vez que cresce o emprego
formal e há expansão econômica, como ocorreu nos anos mais recentes. O
mesmo gatilho funciona de forma muito mais leve no SUS, dado o
atrelamento da elevação do financiamento via Tesouro segundo a variação
nominal do PIB. Os gatilhos são diferentes em intensidade e impacto e
podem explicar os movimentos de expansão ou de retração no SUS e no
segmento privado.
Na ótica da política, o crescimento desse
segmento também pode ser explicado pelo caráter e sentido da ação
estatal, em face dos numerosos incentivos e do modelo regulatório
adotado no período do SUS. Além de implantada tardiamente (a partir de
1998/1999), a regulação estatal operada por meio da Agência Nacional de
Saúde Suplementar tem servido mais à organização dos mercados e à
(limitada) regulamentação de relações contratuais entre empresas e
clientes, o que constitui atividade típica de qualquer Estado
capitalista, sem que signifique a existência de um Estado Social.
A
privatização ocorre com o avanço da participação privada na oferta e
gerenciamento de serviços de saúde (hospitais, ambulatórios,
laboratórios) componentes da base do SUS (via contratos, convênios com
instituições filantrópicas, lucrativas, Organizações Sociais, entre
outras), e pelo peso do setor privado operado via empresas de planos e
seguros (com quase 50 milhões de usuários e faturamento da ordem de R$
80 bilhões), ambos contando com financiamento público (na forma de
impostos, isenções e desonerações fiscais e subsídios diversos,
inclusive ao crédito).
Na verdade ocorre um processo combinado de
desmercantilização do acesso (via SUS pela gratuidade ou via planos
pela isenção fiscal ilimitada), acelerada mercantilização da oferta (via
expansão dos serviços privados, principalmente na área de maior
densidade tecnológica) e, finalmente, estímulo crescente à capitalização
e formação de grandes conglomerados oligopolistas que englobam
serviços, finanças e indústria. Esse é, aliás, o padrão observado em
outras áreas – alimentos, energia, armamentos – como forma de controlar
os riscos inerentes ao processo de crescimento exponencial dos ativos
financeiros (que atingiram, em 2007, a soma de quase US$ 200 trilhões,
frente a uma riqueza real de quase US$ 60 trilhões, segundo estimativas
do Mcklinsey Global Institute).
Dessa forma, o sistema público e o
segmento privado concorrem pelo financiamento público, dependem da
compra de serviços privados para dar cobertura aos seus segurados, são
reféns da indústria internacionalizada do complexo produtivo e,
portanto, possuem pouca margem de manobra para controlar custos e
regular os provedores.
Essa coexistência têm efeitos deletérios
do ponto de vista da eficiência geral do sistema de saúde (tendência à
incorporação tecnológica e custos crescentes, sob-restrito controle;
busca de lucros pelas empresas); e da equidade, visto que perpetua as
desigualdades no acesso, utilização e qualidade dos serviços entre as
pessoas, segundo sua capacidade de pagamento e de usufruto da atenção
disponível nos distintos segmentos. Tende ainda a colocar os serviços
públicos em situação de complementariedade aos privados, nos casos de
“clientes” que não interessam aos mercados (idosos e doentes crônicos,
que requerem tratamentos de alto custo).
O padrão de
desenvolvimento fortemente assentado no consumo e nas exportações, que é
a marca desse novo período, favorece e necessita de políticas voltadas
para inserção de grandes massas no mercado de consumo e o estímulo à
conformação de conglomerados para fazer face à concorrência
internacional dessa fase da globalização.
As medidas recentes de
fortalecimento do consumo das famílias, o intenso processo de
desoneração fiscal de alguns produtos de consumo de massa, o estímulo ao
crédito via redução dos juros, podem explicar o crescimento do consumo
das famílias em quase cinco pontos percentuais entre 2004-2008 e
2011-2012, conforme artigo de Bráulio Borges (Folha de São Paulo, de
17/03/2013).
Nesse novo padrão de desenvolvimento, a política
social foi direcionada não para fincar as bases do Estado Social com a
finalidade da criação de uma sociedade de iguais protegida das forças do
mercado, mas para operar politicas focalizadas de combate à
desigualdade, da forma mais rápida e impactante no consumo das famílias.
Isso
é o que chamamos de doença holandesa (sobrevalorizar uma atividade de
forma a aniquilar outras) da política social, isto é, a acentuada ênfase
estatal nas ações e estratégias de forte impacto no aumento do consumo
das famílias, de maneira a subtrair recursos, vontade e apoio para a
criação das bases de uma Seguridade Social universalista e solidária.
Nesse
modelo, o Estado Social carece de recursos, desmorona ou é ativamente
desmantelado porque as fontes de lucro capitalista foram levadas da
exploração da mão de obra fabril para a exploração dos consumidores. Os
pobres precisam de dinheiro e de linhas de crédito para consumir e ter
alguma utilidade na economia; e esses não são os tipos de serviços
fornecidos pelo Estado Social, como afirma acertadamente Zigmund Bauman
em obra recente, intitulada “Danos Colaterais”.
Não se trata aqui
de ignorar a relevância do aumento do poder de consumo das famílias
como expressão da redução das desigualdades de renda e da possibilidade
de acesso de grupos sociais menos favorecidos a bens até então
disponíveis para poucos. Trata-se, no entanto, de reconhecer que essa
estratégia isoladamente não é suficiente. Na área social, a
individualização dos riscos e da responsabilidade sobre a proteção –
consequências do esvaziamento do Estado Social e da rarefação das
políticas universais-, em médio e longo prazo, reitera padrões de
estratificação e erode as possibilidades de construção de sociedades
mais solidárias.
O debate sobre o novo-desenvolvimentismo está em
construção, no plano teórico-acadêmico e político-governamental. A
forma como a política social se articula às políticas econômicas
representa uma questão crucial para a natureza de novos Estados
desenvolvimentistas. O novo-desenvolvimentismo não pode se resumir
apenas a uma visão “neoestruturalista” – no sentido do fortalecimento de
segmentos da indústria, de grupos capitalistas nacionais, de promoção
do dinamismo econômico –, atrelados a políticas de combate à pobreza e
criação de novos mercados de consumo. Essa é uma opção limitada, que
tende a reproduzir problemas antigos, não dá conta das transformações no
capitalismo e perpetua a fragmentação e as desigualdades na sociedade.
Como
adverte Peter Evans em sua produção recente, os novos Estados
desenvolvimentistas deveriam conferir centralidade às políticas sociais
de caráter universal – como educação e saúde – dada a sua importância
não somente na perspectiva dos direitos sociais, mas também na geração
de empregos qualificados e na construção de novas capacidades, cruciais
na fase atual do capitalismo mundial, baseado nos setores de serviços e
no peso das inovações tecnológicas. A construção desse modelo passa pela
condução estatal das políticas, pelo limite às forças de mercado e por
uma nova forma de “autonomia inserida” do Estado, que não se resume às
relações com os grupos capitalistas, mas sim à permeabilidade a diversos
grupos sociais, em um contexto democrático.
Em que pesem as
dificuldades relacionadas ao cenário do capitalismo global, na América
Latina o Brasil teria uma posição privilegiada para conformar um novo
modelo desenvolvimentista, que integrasse políticas econômicas e sociais
em outra lógica, conferindo um lugar de destaque para as políticas
universais. O país já é uma das maiores economias do mundo; uma
democracia recente, porém estável; dispõe de instituições políticas
relativamente sólidas; de uma população numerosa, com uma proporção
ainda expressiva de jovens; de uma Constituição nacional que assegura
direitos sociais amplos; de um desenho de sistema de saúde público e
universal, singular entre as nações capitalistas da Região.
Quem
dera aproveitássemos o momento para superar as nossas contradições
históricas e promover mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento e
no caráter da política social brasileira, conformando um novo Estado
Social, com vistas à construção de uma sociedade mais justa e
igualitária. Nesse projeto, o sentido do SUS, como expressão de uma
política de saúde efetivamente universal, estaria claro para todos.
*
Professora do Departamento de Medicina Preventiva/Faculdade de
Medicina/ Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade do CNPq e
membro da Plataforma Política Social. E-mail: analuizaviana@usp.br.
**
Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em
Saúde/Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo
Cruz. Bolsista de Produtividade do CNPq e membro da Plataforma Política
Social. E-mail: cristiani@ensp.fiocruz.br.
Fonte: Cebes - Centro Brasileiro de Estudos em Saúde.
Blog do Cebes: http://cebes.org.br/verBlog.asp?idConteudo=4490&idSubCategoria=56
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